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O que leva a Bahia a ter a primeira região de clima similar ao de desertos no Brasil

Área de cerca de 5 mil km², equivalente a oito vezes a cidade de Salvador, fica no norte do estado



Ao ouvir ou ler a palavra deserto, o imaginário costuma levar a montanhas de areia inabitadas, no estilo Deserto do Saara. O Brasil, apesar da grande diversidade, não possui áreas assim, mas as temperaturas cada vez mais elevadas e escassez de chuvas fizeram o país registrar, pela primeira vez, uma região árida, com clima similar ao de desertos. Dona da maior porção do semiárido brasileiro, é a Bahia a responsável por abrigar a região, que tem cerca de 5,7 mil km² (oito vezes a área da cidade de Salvador) e fica no norte do estado.


A novidade preocupante foi revelada através de um estudo divulgado no último dia 14 feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). E a notícia não para por aí.

Um artigo publicado pelo pesquisador Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens de Satélite da Universidade Federal de Alagoas (Lapis/Ufal), aponta ainda a ampliação das chamadas áreas de desertificação na Bahia.


O primeiro estudo reúne dados de 1961 até 2020, analisando a quantidade de chuvas e a evapotranspiração potencial (capacidade da atmosfera local de absorver a água do solo e da vegetação). A partir dessas informações, é possível calcular o chamado índice de aridez, capaz de identificar quão seca é uma região. Quanto mais próximo de zero, maior a aridez do local.



https://www.correio24horas.com.br/minha-bahia/o-que-leva-a-bahia-a-ter-a-primeira-regiao-de-clima-similar-ao-de-desertos-no-brasil-1123
Mapa aponta área árida inédita circulada em vermelho. Crédito: Divulgação/Inpe

A região semiárida costuma registrar índices entre 0,2 e 0,5. Na etapa de estudos entre 1990 e 2020, a pesquisa identificou, além de uma expansão dessa área a uma taxa média de 75 mil km² por década, pela primeira vez no Brasil também índices abaixo de 0,2, caracterizando o clima árido. Os números foram registrados no norte da Bahia, compreendendo municípios como Rodelas, Chorrochó, Macururé e Piauí. A região faz fronteira com o estado de Pernambuco e compreende o Médio Rio São Francisco. Mas, segundo o estudo, o processo de aridez avança por todo o país, com exceção da região Sul e do litoral dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.


Causas e consequências


O aumento da aridez pode comprometer a produção agrícola, a disponibilidade de água potável para a população e a sobrevivência da fauna e flora locais. Para a moradora de Paulo Afonso Valda Aroucha, de 58 anos, as mudanças climáticas são percebidas na prática.


“A gente sempre teve no seminário a estiagem e a seca, mas isso tem se agravado, a gente vê no solo, nas águas, nas plantas. Isso vem prejudicando as condições de plantio. A gente tem feito quintais produtivos em estilo de semi estufa para reduzir a necessidade de água porque, senão, fica inviável. A maioria dos produtores aqui vivem de cisternas e poços, então é preocupante”, conta Valda, que é fundadora da ONG Agendha, que faz parte do programa de proteção ao Rio São Francisco Fiscalização Preventiva Integrada (FPI).

“Em Rodelas, temos uma população indígena que pode ser comprometida. Em Jeremoabo, o mel que, sem a flora, a abelha não tem como produzir. Em Chorrochó e nas proximidades, uma caprinocultura forte, com muitos criatórios. Se a gente não tiver políticas públicas emergentes apropriadas, estruturantes e continuantes, fica difícil a permanência no campo”, completa.


Divisão do clima. Crédito: Lapis/Ufal

Segundo Javier Tomasella, pesquisador do Inpe especialista em mudanças climáticas e recursos hídricos e coordenador do estudo, o aumento da temperatura advindo do aquecimento global é a principal causa do problema. “Não dá para apontar um fator específico; isso é consequência dessa dinâmica global que acontece no planeta inteiro que é o aumento da demanda da atmosfera por conta do aquecimento global”, afirma.


Já o professor doutor em Geografia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Paulo César Zangalli Júnior, a causa é o agronegócio e as consequências são muito mais profundas. “A principal fonte de emissão de gases de efeito estufa no Brasil vem da dinâmica do agronegócio, concentrado ali no Oeste da Bahia, que gera desmatamento e queimada.


Essa dinâmica, na qual também cabe o termo comoditização, causa um processo brutal de degradação do semiárido, também utilizado para abastecer o litoral”, coloca Zangalli, que é membro-titular do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Climatologia (ABCLIMA).

O professor aponta que a aridização aumentará a vulnerabilidade das populações que vivem no semiárido e nessa nova região árida, comprometendo principalmente a agricultura de subsistência, muito comum nesses locais.


“Além disso, também precisamos falar do comprometimento da produção de energia. Temos ali a Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso, por exemplo, e podemos ter um rebaixamento de lençol freático e a alteração da vazão do Rio São Francisco, que já vem sofrendo degradação”, acrescenta.


O pequeno produtor de Irecê João Gonçalves, de 57 anos, confirma que quem pratica a agricultura de subsistência é quem mais sofre. “Os períodos de prolongadas estiagens ou má distribuição das chuvas são terríveis. Conheço dezenas de famílias que tiveram que adaptar seus meios de sobrevivência e todas as famílias têm entes que abandonaram o campo”, diz ele, que é presidente do Sindicato Rural de Irecê e ex-secretário do meio ambiente do município.


“Irecê tem forte vocação para as atividades agrícolas e pecuária, mas vive as consequências do uso descontrolado dos recursos naturais. Os métodos praticados ao longo dos anos, com uso das águas dos rios subterrâneos e da superfície sem gestão adequada, afetaram a qualidade dos solos, das águas e do ar. Já vi dezenas de produtores que perfuram poços, usam as águas de modo intenso, para além da capacidade e não conseguem, sequer, concluir o ciclo produtivo da cultura na qual investiu”, completa Gonçalves.


Segundo Zangalli, o aumento da aridez também pode provocar o aumento da desertificação, já apontada na pesquisa de Humberto Barbosa, do Lapis/Ufal. Um solo já arenoso perderá ainda mais matéria orgânica a partir da menor oferta de água, configurando a intensificação de processos erosivos causados pela ação humana.


Qual a diferença entre aridez e desertificação?


A desertificação não é sinônimo de aridização. Trata-se de um processo que ocorre em regiões tanto áridas quanto semiáridas e é caracterizado pela degradação do solo e perda de vegetação provocadas, principalmente, pela ação humana, como o desmatamento da Caatinga, a agricultura inadequada e a exploração excessiva dos recursos naturais.


O estudo do pesquisador Humberto Barbosa mostra que também é a Bahia que concentra os processos avançados de desertificação e degradação, também presentes em menor escala em Minas, Pernambuco e Paraíba. Ao todo, 13% do território brasileiro é desertificado. “A situação vem se agravando ao longo dos anos. O Nordeste já enfrentou oito eventos prolongados de seca desde 1845, mas nenhum deles durou tanto tempo como a estiagem prolongada entre 2012 e 2017”, coloca.



Ampliação do semiárido e aparição do árido. Crédito: Divulgação/Inpe

“As temperaturas estão mais altas e está chovendo menos no período chuvoso e menos ainda no período seco. E a nossa grande preocupação a partir do resultado desses estudos é que podemos chegar a um ponto de não retorno, um ponto de inflexão e impossibilidade de reverter esse cenário, que só tende a piorar”, finaliza Barbosa.


Há solução?


Na opinião do coordenador do estudo, Javier Tomasella, não há uma solução objetiva. “Vão ser necessárias estratégias de adaptação. Hoje você já tem técnicas específicas para a agricultura que se pratica no Semiárido, que não são as mesmas de uma Zona da Mata. À medida que uma região se torna mais árida, você vai precisar de mais água, então talvez se tenha uma mudança de cultura, optando por uma plantação que não dependa de tanta água. O ideal é que políticas públicas garantam segurança hídrica, que é uma oferta de água que não dependa de períodos secos ou úmidos”, coloca.


Já para o pesquisador e professor da Ufba Paulo César Zangalli Júnior, a solução estaria na mudança radical de modelo de produção aliada à transferência do poder para as mãos dos impactados pelo problema. “A gente está fazendo desde 1970 uma transição lenta e gradual visando mitigar as mudanças climáticas que nunca se completa. Isso acontece porque os grandes atores que estão pautando o clima, produzindo conhecimento e tomando decisões são as grandes empresas de produção de energia, as grandes petrolíferas que produziram e produzem a barbárie. É por isso que nada avança. A gente precisa de um processo que rompa isso e coloque na conta quem mais sofre, quem está na ponta”, opina.


O estudo concluído em setembro pelo Inpe e Cemaden foi encomendado no início de 2023 pelo Ministério do Meio Ambiente para reformulação do Plano Nacional de Combate à Desertificação (PNCD). A iniciativa se deu a partir de uma Auditoria Operacional Coordenada em Políticas Públicas de Combate à Desertificação do Semiárido brasileiro, articulada pelo Tribunal de Contas da Paraíba juntamente com tribunais do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.


Procurado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) afirmou que está trabalhando para atualizar dados e informações sobre Áreas Suscetíveis à Desertificação (ASD) e intensificará o diálogo com os governos da Bahia e Pernambuco, envolvidos na área árida inédita detectada, e também com a Câmara Técnica de Meio Ambiente do Consórcio Nordeste, que reúne as secretarias estaduais de Meio Ambiente.


O órgão informou também que, em setembro, relançou projeto Redeser para combater a desertificação em áreas suscetíveis da Caatinga. Uma parceria com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e o Fundo Global para o Meio Ambiente, a iniciativa atuará inicialmente nos municípios baianos de Uauá e Sento Sé, na região do São Francisco.


A Secretaria de Meio Ambiente da Bahia (Sema), a Secretaria de Agricultura da Bahia (Seagri) e a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba) foram procuradas, mas não responderam aos questionamentos sobre quais ações são feitas e estão sendo planejadas para uma agricultura sustentável.


Onda de calor


Se você é usuário de redes sociais, com certeza não escapou de reclamações em forma de meme sobre o calor que vem tomando conta do país nas últimas semanas. Mas será que isso tem alguma conexão com as pesquisas que falam de aridez e desertificação? Sim! De maneira geral, todos os processos são impulsionados pelo aquecimento global. O pesquisador de professor Paulo César Zangalli Júnior explica o motivo do calor: “As águas do Oceano Pacífico estão bastante elevadas, ao mesmo tempo que as águas do Oceano Atlântico Sul estão mais frias, fortalecendo os sistemas de alta pressão aqui na faixa tropical, servindo como bloqueio atmosférico e facilitando as ondas de calor”.


A elevação das temperaturas dos oceanos está ligada ao aquecimento global e ao El Niño, os mesmos fenômenos responsáveis pelas secas no semiárido. “Quando temos um El Niño intenso, como em 2016, há a tendência de seca no Nordeste. Outro impulsionador de estiagens é que as chuvas no semiárido surgem a partir da Zona de Convergência Intertropical que fica em cima do Oceano Atlântico. Quando chega fevereiro, março e abril, ela desce e forma as chuvas. Se o oceano está muito quente, essa zona não desce muito, não chega ao semiárido e aí temos a seca”, coloca o PhD em Meteorologia Carlos Nobre, membro das academias Brasileira e Mundial de Ciências e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.


Nobre completa com mais uma notícia desanimadora. “Agora estamos vivendo um El Niño forte, com o Oceano Atlântico Norte batendo recorde de temperatura. Com isso, temos informações suficientes para prever, com muita confiança, uma seca de fevereiro a maio de 2024 para a região semiárida”, finaliza.


Zangalli Júnior destaca que, mesmo o El Niño sendo um fenômeno natural, ele está sendo intensificado pela ação humana. “Essas ondas de calor entre a primavera e o verão sempre ocorreram, mas nunca com essa magnitude e frequência. Isso é resultado direto das ações climáticas, do uso do solo”, afirma.


Segundo Carlos Nobre, o El Niño vai chegar ao seu ponto mais forte entre dezembro deste ano e janeiro e fevereiro de 2024. “A probabilidade do fenômeno fazer as frentes frias com baixa pressão ficarem presas no sul e induzir ondas de calor mais fortes para o restante do país nesse período é alta”, diz. O El Niño terá fim somente no segundo semestre de 2024, quando as temperaturas devem sofrer queda no planeta.


Carolina Cerqueira

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