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Como a redução histórica de recursos destinados à segurança alimentar afeta a população brasileira

Programa de Aquisição de Alimentos tem recursos reduzidos em 77,3% ao longo de seis anos, ganha fôlego na pandemia, mas tem execução inexpressiva em 2021. E programa de acesso à água fica sem operação em 2021



Aricelia Ferreira Alves, 19 anos, vive com o marido e seus dois filhos, uma bebê de 9 meses e um menino de 3 anos, em Lagoa de Dentro, uma das comunidades isoladas e de difícil acesso do município de Pilão Arcado, no sertão da Bahia. No dia em que percorremos a região onde a jovem mora, em meados de dezembro de 2021, a Caatinga estava coberta de folhas verdes e adornada com flores brancas e amarelas.


Quem passa pela estrada nessa época do ano não imagina que a mesma vegetação fica completamente cinza por cerca de nove meses, período que costuma durar a seca. O baixo volume de chuva impede que o solo se mantenha nutrido para o plantio.


Distante apenas 12 quilômetros do Rio São Francisco, um dos mais importantes cursos d’água do Brasil, a comunidade não tem acesso à água encanada, a água de poço é salgada e a água distribuída poucas vezes ao mês em caminhões pipa não é tratada.


A única forma de se obter água potável é por meio da cisterna — uma tecnologia desenvolvida por um sergipano e que foi incorporada a um programa do governo federal em 2003, no mandato Lula, após articulação da sociedade civil. A tecnologia coleta água da chuva e a armazena em reservatórios construídos no quintal das casas. Só que Aricelia ainda não teve acesso à cisterna, portanto, não conta com uma fonte própria de água para beber, cozinhar e muito menos plantar. Segundo o próprio Ministério da Cidadania, 1,4 milhão de famílias brasileiras estão na mesma condição que ela.


O recurso federal executado na ação orçamentária de Acesso à Água para Consumo Humano e Produção de Alimentos na Zona Rural, mais conhecida como Programa de Cisternas, encolheu 96,8% em seis anos (de R$ 714 milhões, em 2014, caiu para R$ 22,5 milhões, em 2020).


Os dados foram obtidos pela reportagem de O Joio e O Trigo via Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio do Ministério da Cidadania. Nós solicitamos, mas não recebemos os valores de 2021. Segundo Alexandre Pires, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) — principal rede que põe em prática o projeto através da verba pública —, não houve pagamento do recurso no último ano. A Articulação também tentou apresentar um plano de universalização do acesso à água ao Congresso Nacional e ao Ministério da Cidadania, mas não teve sucesso.


“Para além da falta de prioridade do governo, a gente ainda tem o fato de que a secretaria [Secretaria Nacional de Inclusão Social e Produtiva] a que o projeto estava vinculado foi esfacelada por completo. O menor orçamento foi o de 2006, com R$ 63 milhões. O orçamento de 2021 foi de R$ 61 milhões e sem operação”, disse Pires.


Esse valor corresponde ao orçamento inicial previsto a partir da lei orçamentária sancionada por Bolsonaro. Mas esse recurso pode ser alterado tanto para baixo quanto para cima. No Painel do Orçamento Federal, onde estão disponíveis todas as ações do governo, consta que o orçamento de 2021 foi reduzido pela metade e a previsão de recurso para 2022 é de apenas R$ 46,7 milhões.


Se a verba fosse mantida no patamar de 2014, considerando a correção anual pelo Índice Nacional de Custo de Construção (INCC) e a hipótese de execução contínua dos recursos, é bem provável que Aricelia já tivesse recebido a tão sonhada cisterna.


Um edital de justificativa, publicado pelo Ministério da Cidadania em 16 de dezembro de 2021, firmou 11 convênios com consórcios intermunicipais e prefeituras para aplicação de R$ 31 milhões do valor que não foi executado durante o ano na implantação de tecnologias de acesso à água. Os convênios devem atender nove estados. A dispensa de concorrência pública é justificada pela condição de extrema pobreza do público-alvo. O edital traz a informação de que 647 mil famílias rurais não possuem nenhuma solução adequada de acesso à água no Semiárido e 1,4 milhão de famílias estão na mesma condição no Brasil. A referência é o Cadastro Único — ferramenta do governo federal abastecida pelas prefeituras. O documento não informa qual será o tipo de tecnologia empregada a partir desses convênios, diz apenas que há 27 possibilidades.


As cisternas construídas pela rede da ASA são de placas de cimento, têm formato cilíndrico, são cobertas e instaladas a uma profundidade que mantém a água fresca. Esse tipo de cisterna — que foi a principal tecnologia usada em anos anteriores — custa em torno de R$ 4,5 mil. Supondo que a mesma tecnologia seja empregada nos convênios, seria possível construir apenas 6,9 mil unidades com o recurso disponível.

Queda no orçamento e falta de informação

Além da ação de acesso à água, procuramos informações sobre outros seis programas alimentares que faziam parte do escopo de políticas de segurança alimentar e nutricional e que eram complementares. São eles:

  • Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)

  • Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater)

  • Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos

  • Bolsa Verde

  • Apoio a organização econômica e promoção da cidadania de mulheres rurais

  • Apoio ao desenvolvimento sustentável de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais

Os três primeiros da lista tiveram reduções de orçamento acima de 50% e os outros três não existem mais. O programa com maior orçamento entre eles é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos da agricultura familiar, gerando renda para esse público, e os distribui para instituições carentes. Assim como o Programa de Cisternas, o PAA existe há quase 20 anos e foi um importante gerador de renda para as famílias rurais no Brasil. Ele surgiu como uma estratégia a partir do programa Fome Zero, criado em 2003. Nos anos seguintes, foram criados o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.


Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o PAA, publicado em 2019, aponta que, na época da criação do programa, foi observado que gerar renda aos agricultores familiares não era suficiente. Eles precisavam de outras condições para poder produzir, como “acesso a conhecimento, recursos financeiros para a compra de insumos, acesso à terra e à água”. Para suprir essas carências é que outras políticas surgiram, como a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, o programa de crédito do Pronaf e o próprio Programa de Cisternas (que já era uma demanda antiga no Semiárido).


Em 2019, o PAA teve redução de 77,3% no valor executado se comparado a 2014. Em 2020, o orçamento só não foi pior porque recebeu um incremento de R$ 500 milhões via a Medida Provisória 957 — um recurso ligado à pandemia e que foi conquistado após pressão da Articulação Nacional de Agroecologia. Naquele ano, o Ministério da Cidadania executou 43,7% do recurso disponível (R$ 291,9 milhões). Como os dados que solicitamos via Lei de Acesso à Informação estão incompletos, não foi possível entender o que ocorreu em 2021.


O que podemos afirmar é que, de acordo com a atualização do Painel do Orçamento Federal, o orçamento de 2021 foi na casa dos R$ 135,2 milhões. Destes, apenas R$ 58 milhões foram pagos aos agricultores, o que representa redução de 86,5% se comparado a 2014. Mas é provável que a sobra do recurso de 2020 tenha sido aplicada em 2021. Significa que orçamentos empenhados em anos anteriores, mas que não foram totalmente executados, podem ser pagos nos anos subsequentes. Essa sobra de recursos é chamada pelo governo de “restos a pagar” e não consta no painel.


De acordo com Carlos Eduardo Leite, do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) pelo Nordeste e coordenador geral do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop), os programas eram políticas que chegavam ao agricultor familiar e davam condições mínimas de produção.


Desmonte de políticas alimentares


A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em setembro de 2019, é apontada pelas organizações ligadas ao tema como uma das principais atuações de desmonte das políticas alimentares. Instituído em 1993, ainda no governo Itamar Franco e com uma pausa durante o governo Fernando Henrique, o Consea tinha a tarefa de articular as três instâncias de governo (municipal, estadual e federal), os representantes da sociedade civil e as instituições que trabalhavam com a segurança alimentar. Era o Consea que monitorava o andamento e a prestação de contas dos programas alimentares e fazia a conexão direta com o presidente da República.


“Havia uma agenda organizada por trás da segurança alimentar e nutricional que estava ancorada em parte nesses programas, em parte no Consea e em uma aliança com o Ministério Público na defesa dos povos e comunidades tradicionais e no questionamento da agenda fundiária. O jeito de você matar esse espaço e esse questionamento da indústria de alimentos é eliminando o Consea e deixando morrer de inanição essas outras coisas”, avaliou uma especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e servidora de carreira que atuou nas políticas de segurança alimentar, mas que prefere não se identificar por medo de sofrer perseguição.


A especialista ouvida pela reportagem lembra que os programas já começaram a perder orçamento no governo Dilma (2011-2016) por conta da crise fiscal, mas enfraqueceram ainda mais nas gestões seguintes (Temer e Bolsonaro) com a desestruturação de ministérios e secretarias que pensavam estratégias de combate à fome.



Balde na cabeça, carrinho na mão


Embora o Programa de Cisternas, ao longo de quase 20 anos, tenha alcançado mais de um milhão de famílias que vivem no Semiárido, em nove estados do Nordeste e em Minas Gerais muitas famílias como a de Aricélia, a jovem do início da nossa história, ainda não têm acesso a uma fonte de água.


“O acesso à água no Semiárido foi, desde o princípio, alocado dentro da ação de segurança alimentar do governo federal ligado ao [extinto] Ministério do Desenvolvimento Social, no combate à fome, ou seja, numa associação direta entre ter acesso à água e ter acesso a alimentos”, disse Alexandre Pires, da ASA.

Quem tem acesso à rede de água e esgoto não faz ideia de como é carregar baldes e bacias para realizar os afazeres básicos do dia a dia. Mais distante ainda está a realidade de quem não tem uma fonte de água no quintal de casa para fazer esse manuseio e depende da solidariedade de vizinhos para alimentar os próprios filhos.


Tímida com a nossa presença, Aricélia conta em poucas palavras como é a rotina de quem ainda não tem a tecnologia. Quando o marido consegue algum contrato para trabalhar de pedreiro na cidade, ela se encarrega de caminhar quilômetros todos os dias para buscar água. Mas quem tem a cisterna também precisa racionar o líquido para que ele dure o ano inteiro. Dividir o pouco que se tem é um desafio.


“Quando o meu marido não está em casa, eu preciso levar os meninos junto comigo, no sol quente. A dor no braço [de carregar os baldes] é ruim. Tem vezes que eu deixo as crianças lá [na casa dos vizinhos] e venho botar água aqui e tem vezes que eu deixo só a menina e ele [filho de 3 anos] vem atrás de mim.”

A mesma dificuldade é vivida pelo casal Narla dos Santos Lourenço, 20 anos, e Francisco dos Santos Silva, 26, que moram na comunidade Pimenteira, no município de Remanso, na microrregião de Juazeiro. Ela equilibra um balde na cabeça e ele carrega um compartimento maior dentro de um carrinho para buscar água na casa dos pais de Francisco. Como a água potável da cisterna é dividida entre duas famílias, o casal faz uso dela apenas para beber e cozinhar. As outras tarefas do dia a dia são feitas com água salgada coletada de um poço.


“Por conta da água salgada, tem que usar mais detergente para lavar a louça, senão fica tudo manchado. Para lavar a roupa também gasta mais sabão, porque não ensaboa. E para lavar o cabelo é a mesma coisa”, contou Narla.

Um dos técnicos do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop) que nos acompanhou no percurso, Neilton Dias da Silva, explica que a maioria das famílias possui apenas a cisterna da primeira água, ou seja, de consumo, com capacidade de 16 mil litros de armazenamento. A captação da água da chuva é feita aproveitando o telhado das casas, que escoa a água através das calhas. O reservatório, porém, acaba não sendo suficiente para abastecer a família o ano inteiro. Por isso, elas dependem dos caminhões pipa, bancados pelo Exército, que distribuem água coletada no rio São Francisco (que não é tratada). “Se o pipa não vem logo, a cisterna fica seca e a família é obrigada a comprar água”, disse o técnico.


Quando precisam comprar água de fornecedores privados, os moradores gastam em média R$ 200 para abastecer o reservatório, o que corresponde a metade ou quase toda a renda da família. Já os que possuem a cisterna de segunda água, que comporta 52 mil litros e serve para produzir alimentos, conseguem garantir água para consumo por mais tempo. Essa é uma tecnologia que capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento de 200 metros quadrados construído sobre o solo. A água é direcionada para a cisterna através de um cano. A construção custa em média R$ 19 mil. Só recebe a cisterna de segunda água quem já tem a primeira. A ASA estima que há 800 mil famílias aguardando a construção dessa tecnologia.


Publicado originalmente por: ojoioeotrigo em 15/03/2022.

Escrito por: Schirlei Alves


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